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15 de out. de 2009

LEGALIZAÇÃO DE DROGAS ILÍCITAS NO BRASIL - EM BUSCA DA RACIONALIDADE PERDIDA

* Ronaldo Laranjeira
O intenso debate mantido no Brasil sobre a legalização de drogas atualmente ilícitas, tem se revelado profundamente ideológico e nada esclarece a respeito da melhor política de atenção ao uso e abuso de drogas a ser seguida. Quando o foco no status legal de uma droga torna-se o assunto principal do debate é como se o rabo estivesse abanando o cachorro e não o contrário.


Esta intensidade obscurece o fato de que, longe de uma reação eficiente ao longo do tempo, a sociedade não tem avaliado muito bem os riscos do uso de uma nova droga ou uma nova forma de uso de uma velha droga. Observa-se, por exemplo, que a partir do começo do século inovações tecnológicas fizeram a produção de cigarros ficar mais fácil, tornando a absorção da nicotina quando do uso dos novos cigarros muito mais eficaz do que aquela obtida na produção artesanal que ocorria anteriormente. E, sobretudo, o preço do cigarro caiu dramaticamente, resultando em um aumento no número de fumantes em todo o mundo.


Além disso, por muitos anos os danos físicos associados ao cigarro não foram identificados. Muitos governos chegavam mesmo a estimular o consumo do fumo, estimulados pelos ganhos com impostos. Mais de quarenta anos para os países desenvolvidos identificassem os males causados pelo fumo de uma forma definitiva, e outros vinte para implementar políticas que pudessem começar a reverter a situação. Esta lentidão em reconhecer danos em algumas situações sociais faz com que mudanças no status de qualquer droga, e principalmente quando um aumento de consumo seja uma das possibilidades deva ser encarada com extremo cuidado.

Excesso de retórica X informações objetivas
Um dos motivos que dificulta a ação da sociedade é um excesso de retórica que ocorre em relação ao problema. No caso recente da maconha no Brasil tem sido comum utilizar-se uma retórica na qual o uso desta substância estaria relacionado com a liberdade e os direitos do cidadão em usar qualquer droga e que não seria função do estado interferir neste comportamento. Um excesso de controle do estado iria contra os direitos da pessoa. Mas, como cada droga tem a sua retórica, o cigarro, por outro lado, tem inspirado no Brasil outro tipo de retórica onde se busca estimular uma ação estatal em controlar o abuso das companhias de cigarro. Na Suécia, ao contrário, a propaganda de cigarros e álcool seria uma afronta à liberdade individual. Deixar crianças e adolescentes serem expostos à propaganda mentirosa do fumo e do álcool seria uma forma bárbara de primitivismo social.


Tanto a intensidade deste debate quanto o clima ideológico advém do fato de que temos utilizado quase nenhuma informação objetiva para avaliarmos a política a ser seguida. Os debatedores usam informações de fontes muito duvidosas e muitas vezes completamente fora de contexto. Temos que pelo menos lançar mão de alguns modelos teóricos que poderiam guiar as decisões.


Na prática, três modelos, de forma explícita ou não, acabam sendo usados neste debate. Os que defendem a proibição total do uso de drogas acreditam que a proibição total de uma droga seria a melhor opção, pois não causaria nenhum dano social, e a medida que caminhássemos para a legalização das drogas, o dano social aumentaria. O grande argumento contra este modelo foi a própria lei seca americana que produziu um aumento considerável da violência devido ao fortalecimento do crime organizado, e muito se tem escrito sobre este período da história americana, enfatizando este lado do custo social da lei seca. No entanto, do ponto de vista do consumo de álcool a lei foi um sucesso, pois diminuiu consideravelmente o consumo de álcool global. Entretanto, houve um aumento do consumo de álcool de péssima qualidade e um número considerável de pessoas teve problemas sérios de saúde. De qualquer forma, uma simples análise de custo benefício mostra que esta foi uma experiência que nenhum país ocidental quer repetir novamente, embora os países islâmicos ainda adotem este tipo de controle social rígido.

Do outro lado do debate há as pessoas que defendem a legalização total das drogas, entendendo que a proibição total de uma droga levaria a um grande nível de dano, principalmente pelo crime que estaria associado com o uso ilegal de uma substância, a maior corrupção social, o nível mais impuro da droga no mercado negro, e à dificuldade das pessoas buscarem ajuda em relação a um comportamento ilegal. Argumenta-se que a proibição total causaria mais dano do que mesmo a legalização total da droga. A grande falha deste tipo de argumento é que não leva em consideração que a legalização de uma droga produz uma maior oferta desta droga, e, portanto, exporia um número maior de pessoas ao consumo e, consequentemente, às suas complicações. Este modelo enfatiza em demasia o comportamento individual do uso de drogas e não leva em consideração o nível agregado de dano. Por exemplo, se legalizássemos completamente a maconha uma das possibilidades seria um maior consumo global desta droga, e possivelmente um maior consumo na população mais jovem, pois é isto que tem ocorrido com as drogas lícitas como o álcool e o cigarro. Portanto, com a legalização é possível que obtivéssemos um menor número de crimes mais violentos, mas, por outro lado, a população mais jovem teria maiores complicações na vida escolar, e talvez até aumentasse um tipo de criminalidade menos violenta para conseguir um pouco de dinheiro para consumir drogas.


Existe um terceiro modelo intermediário de política que tem recebido grande suporte em termos de pesquisa, especialmente quando se reúnem todas as drogas de abuso lícitas ou não. Estipula que a proibição total de uma droga produz dano, mas à medida que a droga progride na escala de legalidade, e, portanto, a sua disponibilidade social aumenta, o número de usuários aumenta, aumentando também o nível global de dano. As drogas lícitas oferecem as maiores evidências para este modelo. No caso do álcool, por exemplo, centenas de pesquisas mostraram que quanto menor o preço e maior a disponibilidade num país, maior é o número de pessoas com problemas relacionados com o uso de álcool. A conseqüência de se adotar este modelo de política de drogas é que devemos, em primeiro lugar, diminuir o consumo global de todas as drogas. A estratégia para atingirmos esta diminuição é que pode variar de droga para droga e depender do momento histórico que uma sociedade vive.


A tendência mundial busca tornar progressivamente o álcool e o fumo mais próximos de uma proibição, ou de controles sociais mais rígidos, através de leis e restrições ao uso das mais variadas. No caso da maconha não existe uma tendência mundial nítida, com alguns países adotando penas mais leves ou um grau maior de tolerância, mas em nenhum lugar legalização aberta. O caso das drogas mais pesadas como heroína e cocaína a tendência é marcante em relação à proibição.


Ao invés de apontar como hipocrisia social o fato de existir políticas diferentes para drogas diferentes, esta deveria ser uma atitude pragmática de uma sociedade que queira efetivamente responder ao problema das drogas. Uma política de drogas baseada em resultados e não em retórica e debate ideológico deveria ser julgada pelo seu efeito na diminuição do custo social de todas as drogas e não somente de uma droga específica.


As drogas lícitas podem nos ensinar algo?


O álcool é a droga modelo com maior potencial para nos ensinar como estabelecer uma verdadeira política de drogas baseada em resultados. Em 2004, a Organização Mundial de Saúde reuniu os maiores especialistas em álcool do mundo para propor quais as medidas a serem implementadas em todos os países para diminuir o custo social relacionado com o álcool (BABOR et al., 2004). O princípio básico dessas políticas é que deveríamos diminuir o consumo global de álcool em todos os países. O consumo de álcool de qualquer população segue uma curva normal, onde temos uma parte da população que bebe um pouco, uma grande parte que estaria na média populacional e uma parte de bebedores pesados. Poderíamos pensar inicialmente que deveríamos buscar políticas que diminuíssem o número de bebedores pesados, mantendo a média de ingestão de álcool da população. Mas essas políticas poderiam quando muito produzir um pequeno efeito quando implementadas. No entanto, quando as políticas são no sentido de diminuir o consumo global, existe um impacto muito maior no número de bebedores com problemas, pois, um número menor de pessoas beberá, um número menor ficará dependente, e, portanto, menor custo social global. Este efeito tem sido chamado do “paradoxo preventivo”, onde, para diminuirmos substancialmente o número de pessoas dependentes, temos de diminuir o consumo global de toda a população. As evidências deste modelo são muito consistentes, e têm sido mostradas em centenas de estudos.


As políticas que podem ser estabelecidas no caso do álcool são várias e visariam essencialmente diminuir o consumo global. Entre elas destacam-se:


1 - Políticas de preço e taxação. São as ações com maior impacto social imediato. Estudos têm mostrado que o preço do álcool segue o padrão de qualquer mercadoria, e quanto maior o preço menor o consumo. Existe uma elasticidade do consumo, que no caso do álcool é diferente de outras mercadorias, mas para cada aumento de 100% do preço existe cerca de 30% de queda de consumo global. Mesmo os bebedores pesados diminuem o consumo de acordo com o preço. Este tipo de política pode ser especialmente útil no Brasil, onde o preço do álcool é um dos mais baixos do mundo ocidental, cerca de U$ 1,5 por um litro de pinga.


2 - Políticas que diminuíssem o acesso físico do álcool. Tem sido demonstrado que quanto menor o número de locais vendendo álcool, maior o respeito ao limite de idade para vendas de bebidas alcoólicas, maior a consistência das leis do beber e dirigir, menor é o consumo global de uma população.


3 - Políticas de proibição da propaganda nos meios de comunicação. O objetivo da propaganda do álcool não é só de fazer com que os consumidores façam preferência por esta ou aquela bebida, mas criar um clima social de tolerância e estimulo com o álcool visando nitidamente aumentar o consumo global. A proibição da propaganda tem sido consistentemente mostrada em pesquisas como um fator importante da diminuição do consumo.


4 - Campanhas na mídia e nas escolas visando informar melhor os efeitos de álcool. O efeito dessas campanhas quando feitas desacompanhadas das demais políticas produzem muito pouco efeito. De nada adianta a professora na escola informar o aluno sobre álcool e outras drogas, se a televisão continua mostrando a alegria e descontração associadas com o álcool, quando esta droga transforma-se na “paixão nacional”.


Em resumo, o álcool é a droga que apresenta formas de controle social mais e melhor estudadas, e onde as políticas para diminuir o custo social do seu uso são bem estabelecidas. Esses princípios podem muito bem ser usados para as demais drogas visando essencialmente diminuir o acesso e o consumo dessas drogas.


As leis influenciam o consumo de drogas?


Uma pergunta que deve ser respondida é: Se os controles sociais são efetivos por que tornar ilegais somente algumas das drogas? Como já salientado acima, estratégias diferentes deveriam ser usadas para as diferentes drogas, e as evidências apontam que muito pouco benefício ocorreria em tornar as drogas que são ilegais em legais, pois haveria uma forte tendência no aumento do consumo. Mas, uma questão que permanece é se as leis efetivamente influenciam o comportamento de consumo de drogas.


No caso do álcool, tem sido demonstrado por inúmeros trabalhos que a proibição da venda de bebidas alcoólicas para menores, quando implementadas, diminui significantemente o consumo. Vários estados americanos quando implementaram leis proibindo a venda de bebidas houve uma diminuição substancial no número de acidentes de carro entre menores devido ao uso de álcool. O grande problema em tentar responder o quanto as leis impedem o consumo de drogas é que não existem muitos dados para as drogas que sempre foram ilegais. MacCoun (1993) buscou analisar a escassa literatura existente, baseado também no efeito das leis em deter outros comportamentos anti-sociais. Esse autor mostrou que as leis e os controles informais sociais conteriam o consumo de drogas através de vários mecanismos, a saber: disponibilidade da droga, estigmatização do uso, medo de atividades ilegais, o efeito fruto proibido, e um efeito simbólico geral da proibição. A abolição das leis proibindo o consumo teria um efeito dramático em vários desses fatores (estigmatização do uso, medo de atividades ilegais, o efeito fruto proibido, e efeito simbólico geral da proibição), diminuindo, portanto, uma série de impedimentos para o consumo.


A constatação mais importante é que as evidências mostram que a abolição das leis teria um efeito maior nas pessoas que comumente não consomem drogas, levando potencialmente um maior número de pessoas a experimentarem e a tornarem-se usuários regulares ou esporádicos. Por outro lado os estudos mostraram que quanto maior o envolvimento com drogas menor seria o impacto das leis em deter o consumo. No entanto a lei serve para deter um número substancial de pessoas de usar as drogas. Esse estudo mostra que qualquer efeito dramático no status legal de uma droga é desaconselhável, pois as conseqüências são literalmente imprevisíveis com uma nítida tendência a um aumento do consumo devido à falta de controles sociais disponíveis e falta de leis muito claras.


Como visto, o desafio de uma política de drogas é buscar o balanço certo para cada droga, mas sempre visando uma diminuição global do consumo. A melhor atitude social seria de uma tolerância contrariada com as drogas, sem fervor ideológico, mas com um pragmatismo afiado e persistente. Corremos o risco no Brasil, de que o debate da legalização de drogas venha a ocultar as reais questões relacionadas com uma política de drogas racional e balanceada. Podemos ficar anos num debate ideológico improdutivo, onde as pessoas defenderão a favor ou contra a legalização de uma droga específica com grande paixão e pouca informação.


Na última década, tivemos um exemplo dramático de uma falta de política associada com um debate ideológico improdutivo sobre a relação do uso de drogas injetáveis e a infecção pelo HIV. Durante anos se discutiu se seria válido trocar seringas e agulhas com os usuários de drogas e se isto seria ou não um estímulo ao consumo de drogas. Chegamos em 1996 com mais de 50% dos usuários de drogas contaminados pelo HIV e milhares de usuários, suas esposas e filhos mortos por esta postura cega e desumana. A Inglaterra, por exemplo, começou a discutir este assunto em 1984 e implementou rapidamente políticas realistas, e apresenta hoje somente 1% dos seus usuários contaminados. Políticas que foram implementadas com debate, mas sem paixão, buscando alcançar resultados onde a prioridade era manter vivos os usuários.


O desafio do debate das drogas no Brasil não é se devemos afrouxar as leis sobre o consumo e/ou porte de maconha, mas como fazer um debate informado e com dados, e produzir uma política de drogas racional e balanceada que possa ser avaliada constantemente. A implementação desta política não ocorre espontaneamente, mas com uma ação determinada de governo. Talvez seja inútil esperarmos por uma grande política nacional de drogas. Ações locais de governo poderiam fazer uma grande diferença. Os estados e municípios deveriam envolver-se nessas ações com a ajuda comunitária. A sociedade civil já está bastante mobilizada com o assunto álcool e drogas, é necessário agora que os governos democraticamente eleitos mostrem a sua capacidade de organizar uma resposta racional a um problema que afeta milhões de brasileiros com um custo enorme para o país.


Legalização: Uma proposta não operacional


Cada vez mais o custo social das drogas aumenta e na sua proporção existe a tendência de soluções mágicas e simples como a legalização de todas as drogas. E embora os proponentes dessa solução não exponham uma clara operacionalização de como isso ocorreria, apresentam dois argumentos em seu favor: Devido a grande quantidade de crime associado ao uso de drogas, argumentam que tirando o lucro dos traficantes diminuiria os crimes. E tornando as drogas disponíveis legalmente, acreditam que teríamos uma série de benefícios em termos de saúde pública. A disponibilidade de drogas mais puras e seringas e agulhas limpas poderiam prevenir doenças como hepatite e AIDS, por exemplo.


Esses dois argumentos têm apelo somente em um nível superficial. Quando olhados em detalhes eles desabam. O principal argumento contra a legalização, conforme exposto anteriormente, é que o aumento da disponibilidade de qualquer droga aumentaria o consumo. Além disso, a ação direta de qualquer droga com potencial de criar dependência reforça a chance de que ela venha a ser usada novamente. As drogas que produzem dependência ativam os circuitos cerebrais que são normalmente ativados por reforçadores naturais como fome, sexo. A ativação desses circuitos está na raiz do aprendizado que inicia o processo da dependência química. De forma simplista, podemos dizer que devido ao fato que essas drogas produzem prazer o individuo terá maiores chances de querer repetir a experiência, e este uso repetido mudará os circuitos cerebrais, com grande chance de produzir dependência. Mesmo nas pessoas que não venham a desenvolver uma dependência plena, o aumento da experimentação ou do uso regular das várias drogas que estariam disponíveis acarretaria um aumento do número de problemas. Como as drogas hoje ilícitas acarretam comprometimento das funções cognitivas e motoras, no mínimo aumentam o risco de vários tipos de acidentes e também diminuição da produtividade no estudo e no trabalho.


Outro aspecto a ser levado em consideração são os adolescentes. Teoricamente, eles estão protegidos legalmente da venda de cigarros e álcool. Presumivelmente, após uma legalização das drogas, eles também estariam protegidos da venda de maconha, cocaína e outras drogas. O problema é que essas leis funcionam, na melhor das hipóteses, parcialmente. O uso de tabaco e álcool já é um grande problema de saúde pública para os nossos adolescentes. Especialmente os adolescentes na periferia das grandes cidades estão em risco alto. Temos uma grande chance de que as classes sociais mais desprotegidas venham a pagar um preço maior pelo acesso facilitado a essas drogas, além de terem um menor acesso ao tratamento público da dependência química.


Mas mesmo entre os adultos teríamos um aumento dos problemas relacionados a essas substâncias. Portanto o argumento de proteger a saúde pública com a legalização das drogas não se sustenta por um minuto.


Em relação ao crime o argumento pró-legalização também não se sustenta, mesmo quando caminha para os eventuais benefícios de aumento da arrecadação do governo com a venda das drogas, e que isso poderia ser revertido para a sociedade na forma de tratamento ou prevenção. Essa análise de custo/benefício ignora pelo menos dois fatores. Primeiro subestima o custo da dependência para os indivíduos e suas famílias. Muito embora o custo seja difícil de mensurar, quando vemos famílias afetadas por alguém dependente de drogas podemos avaliar o incomensurável custo e sofrimento por um número significante de pessoas, não somente o usuário, mas várias pessoas ao seu redor.


Em segundo lugar, a idéia que a legalização diminuiria o crime não foi discutida com o devido cuidado. A menos que as drogas sejam fornecidas de graça os usuários deveram continuar pagando por elas. Como a maioria dos usuários de drogas não tem empregos fixos e estáveis, não existe razão para acreditar que muitos deles deixariam de praticar atos criminosos para sustentar o consumo. Além disso, a maioria começa sua carreira no crime antes mesmo de usar qualquer droga. Uma suposta fonte legal de suprimento de drogas, eventualmente coordenada pelo governo, não mudará os determinantes comportamentais e sociais das pessoas envolvidas no crime. Portanto, qualquer análise de custo/benefício é difícil de ser feita nesta conjuntura, pois a análise dos custos revela-se muito complexa e os benefícios discutíveis muito dificilmente serão atingidos.


Mesmo que a equação custo/benefício pudesse ser demonstrada, ainda existe uma última barreira: Ninguém até hoje apresentou um plano operacional da legalização das drogas. Uma idéia pode soar como boa no abstrato, mas necessita ser mostrada de uma forma realista para ser substantivamente analisada. Os que defendem a legalização não apresentam esse plano.


Um aspecto fundamental é: Quem receberia essas drogas legais? Com certeza as crianças estariam foram disso. Deveríamos restringir o acesso aos dependentes químicos, ou até mesmo os não dependentes poderiam usar? Assumindo que tivéssemos uma boa definição de um dependente, restringir a essa população significaria que o mercado negro das drogas continuaria, pois uma boa parte da população que usa drogas não preenche os critérios de dependência. Temos, portanto, uma boa parte de usuários, não dependentes, que possivelmente continuariam propensos a pagar a mais no mercado negro, sem o risco de ser identificados. Na realidade com o suplemento público de drogas ainda temos o risco de que parte dessa drogas seja criminalmente desviada para o mercado negro.


Examinando um pouco mais a fundo essa possibilidade, podemos perguntar: Se alguém que comprou a droga de uma fonte pública machucar outra pessoa sob o efeito da droga, quem seria o responsável? Como poderíamos garantir que uma parte dessas drogas não fosse repassada para as crianças? Parte dos adultos, que não são dependentes de drogas, poderia ter como motivação comprar a droga pra revendê-la para crianças, tornando o acesso para crianças ainda mais fácil do que já é nos dias de hoje.


Existe também o problema da dose. Qual a quantidade que as pessoas poderiam comprar? Se o objetivo é suprir o dependente químico da sua necessidade para eliminar o mercado negro deveríamos fornecer a quantidade solicitada. Mas, em muitas situações a quantidade solicitada pode ser grande, pois vários dependentes desenvolvem tolerância às drogas e usam uma quantidade que para outras pessoas significariam o risco de overdose certa. E fornecendo a todos os adultos qualquer dose, o risco de desvio de uma boa parte dessa droga aumentaria ainda mais. Por outro lado, se fornecemos uma dose pequena não eliminaríamos o mercado negro. Além de tudo, continuaríamos sem a devida proteção às crianças. A experiência inglesa, onde por um tempo foi prescrita heroína para os dependentes, mostrou que além do uso regular da heroína legal os usuários buscavam outra fonte ilegal.
Esses argumentos estão distantes de uma perspectiva puramente moral. Muita gente acha que não deveríamos legalizar as drogas, pois teriam uma objeção moral contra o uso de qualquer droga. O que estamos tentando argumentar é que também do ponto de vista da saúde pública é errado legalizar as drogas. A solução é buscar a prevenção e o tratamento baseados em evidências e não somente na ideologia. Novas pesquisas com suficiente financiamento deveriam estar buscando o que realmente funciona na área de prevenção. Ainda sabemos pouco sobre os reais fatores de risco e proteção para o uso de drogas. Na área de tratamento as pesquisa já avançaram muito nos últimos anos e temos condições de fornecer um sistema de tratamento muito efetivo para a doença chamada dependência química. No entanto o acesso a um tratamento de qualidade para a maioria da população ainda é um sonho de consumo distante.


As dificuldades práticas de uma política de drogas


A humanidade ingere substâncias psicoativas por mais de 10.000 anos, mas foi somente nos últimos 200 anos que temos tentado controlar a produção, distribuição e uso dessas substâncias. Poucas ações tiveram sucesso. É bem possível que tenhamos igual número de sucessos e insucessos.


No século XVII, depois dos europeus levarem o tabaco da América Latina, vários países tentaram proibir o seu uso, mas em seguida desistiram. Entre 1920 e 1933 o álcool foi proibido nos EUA, mas em seguida também a lei foi revogada.


Para algumas questões, entretanto, a ciência tem respostas claras e válidas. Na farmacologia sabemos muito bem os mecanismos de ação da maioria das drogas. Para cada droga podemos prever a ação imediata e do uso crônico. Os epidemiologistas mostram o impacto do uso das drogas, do abuso e da dependência na população, revelando que o custo social de cada uma das drogas é diferente.


No entanto, vários assuntos relacionados à política das drogas permanecem controvertidos. Como controlar as substâncias que afetam a mente? A posse e venda de quais substâncias deveriam ser controladas por lei criminal? De qual droga deveríamos permitir a posse? As leis produzem mais danos do que benefícios? Como medir uma política em relação às outras? As penalidades deveriam ser mais duras ou mais leves?


Todo mundo tem a sua opinião sobre o uso de substâncias, e muitas vezes são opiniões simplistas. Um problema complexo acaba tendo soluções aparentemente simples, e, possivelmente, erradas. Somente teremos uma boa política de drogas quando tivermos estratégias tão complexas quanto o problema. A seguir, apresentamos alguns dos aspectos que tornam difícil uma política efetiva para controlar o uso de substancias.


A dependência é uma doença cerebral


Um dos aspectos que devem ser destacados nesse debate é que o uso contínuo de qualquer substância psicoativa produz uma doença cerebral em decorrência de seu uso inicialmente voluntário. A consequência é que, a partir do momento que a pessoa desenvolve uma doença chamada dependência o uso passa a ser compulsivo e acaba destruindo muitas das melhores qualidades da própria pessoa, contribuindo para a desestabilização da relação do individuo com a sua família e com a sociedade.


Sabemos que o uso de substancias altera mecanismos cerebrais responsáveis pelo humor, memória, percepção, estados emocionais e controles finos de vários comportamentos. A maioria dos representantes da comunidade de especialistas considera a dependência de drogas uma doença cerebral com persistentes mudanças na estrutura e função do cérebro, pois o uso frequente de drogas modifica a estrutura cerebral, e pode levar anos para que esta estrutura volte ao normal. Modificações de vários circuitos cerebrais são responsáveis pelas distorções cognitivas e emocionais que caracterizam as pessoas dependentes. É como se o uso de drogas modificasse os circuitos de controle da motivação natural, tornando o uso de drogas quase que a única prioridade desses indivíduos.


Essa visão da dependência gera controvérsias, principalmente naquelas pessoas que tem a tendência de ter uma visão unidimensional de um problema complexo. Coloca-se a biologia como oposição a mente do dependente. Quando na realidade existe uma grande conexão entre o cérebro e o comportamento. Essa visão não significa que o dependente é uma vítima indefesa e sem responsabilidade por seus atos. Na realidade, o uso de substâncias começa com um ato voluntário, isso implica que a pessoa tem grande responsabilidade pelo seu comportamento e também pela sua recuperação. Portanto, ter uma doença cerebral com essas características não exime de responsabilidade o dependente. No entanto o fato de ter uma doença cerebral implica que muitas vezes é necessário um tratamento médico para produzir uma mudança sólida de comportamento. Isso é importante, pois muitas pessoas acham que, porque o uso de substancias começou como um ato voluntário, o usuário manteria o controle do seu comportamento.


A incerteza dos resultados da legalização de todas as drogas


O que aconteceria se as drogas fossem legalizadas? MacCoun e Reuter (2001) fazem uma revisão da literatura científica das últimas décadas nesse assunto, e mostram que as conseqüências são mais do que incertas. Por um lado, pode haver redução de algum tipo de criminalidade, mas, por outro, aumento significativo do consumo de drogas em até 500%.


O argumento principal de muitos ativistas é que a sociedade ficaria melhor se as drogas fossem legalizadas. Mas a experiência com as drogas legais não é encorajadora. Mesmo em relação ao tabaco, uma história de sucesso relativo em vários países desenvolvidos, uma vez que literalmente todos os fumantes sabem dos riscos envolvidos no comportamento de fumar, e, no entanto, nos EUA o número de adolescentes fumantes tem se mantido o mesmo e a influência política e social da indústria do tabaco se mantém. Também em relação ao álcool o custo social é elevado, principalmente em países como o Brasil, aonde supera até mesmo o custo do tabaco.


Teoricamente é possível criar um tipo de regulação que pudesse evitar os danos da proibição às drogas ilícitas, mas a experiência sugere que existem grandes dificuldades em se manter esse tipo de controle. Se não somos capazes de evitar a promoção de álcool para menores de idade, como seríamos capazes de evitar isso em relação à maconha, por exemplo?


E a experiência holandesa serve para alguma coisa? Deve-se salientar que houve duas fases nesse país. Inicialmente, na década de 70, houve uma decisão de tolerar a posse de pequenas quantidades de maconha, com o argumento de priorizar a repressão às drogas mais pesadas. Durante esse período não houve aumento significativo do consumo de maconha. Entretanto, de 1980 a 1988, numa segunda fase, houve tolerância em relação à venda de maconha nos “Coffee Shops”, quando ocorreu um aumento de mais de 10 vezes no número desses estabelecimentos, com o correspondente aumento no consumo da droga. Se em 1984, 15% dos jovens holandeses consumiam maconha, em 1992 esse número dobrou para 30%, e se mantém nesse nível até os dias de hoje. A experiência holandesa e em outros lugares, como Austrália e o próprio EUA, mostra que remover penalidades criminais em relação ao uso de maconha não aumenta necessariamente o consumo, porque remover somente a penalidade do uso, sem a promoção comercial não produz grande estímulo ao consumo. No entanto, vale ressaltar que a descriminalização, ou usando o nome mais adequado, a despenalização, não oferece grandes vantagens, pois deixa intacto o submundo do tráfico de drogas e todas as condições para a permanência dos problemas relacionados ao uso.


Escolher, portanto, a melhor política não é tarefa fácil. Com uma eventual legalização pode-se até ter uma diminuição da violência individual com cada usuário de droga, o que é uma coisa boa. No entanto, se houver um aumento no consumo de drogas no geral, a violência global pode aumentar. O dano total à sociedade é o resultado da média de dano nos indivíduos pela quantidade de drogas consumida. Com uma política que resulte em muito mais usuários, e talvez até mesmo de usuários mais pesados, o dano total à sociedade deve aumentar.


Boas intenções e Saúde Pública


Existe uma grande dificuldade em transformar boas intenções em benefício social. A maioria dos países pratica algum tipo de política de drogas, mas raramente ela é avaliada de uma forma consistente, o que faz com que alguns aspectos fundamentais desse tipo de política ainda não sejam plenamente entendidos. Por exemplo: Criminalizar as drogas desencoraja as pessoas de usarem ou simplesmente aumenta o preço das drogas? Modificar a política de drogas acarretará em melhorias sociais? Ou algum tipo de conseqüência que não antecipamos poderá modificar os efeitos? Políticas mais liberais estimulam o consumo pela mensagem de que as drogas são aceitáveis? Aumentar os impostos dos cigarros estimula o contrabando?


O ponto é que as políticas não deveriam ser somente consistentes do ponto de vista ideológico, mas também do ponto de vista prático: elas deveriam diminuir o problema.


Essa área é permeada por uma briga de discursos ou uma briga de significados do que deveria ser a sociedade. Alguns sociólogos chamam de mensagem simbólica. Independente do que possa ocorrer na política de drogas, as pessoas inicialmente se preocupam com mostrar a mensagem correta.


Os que defendem a legalização de drogas fazem dois tipos de argumentos o primeiro utilitário e o segundo moral. O argumento utilitário diz que a legalização melhorará a sociedade com menos violência, crime, prisões lotadas, etc.. Mas, como visto anteriormente, todas essas promessas que não podem ser provadas empiricamente. O segundo argumento diz que a lei contra a posse de drogas é um absurdo, pois essas substâncias são menos perigosas do que drogas legais, e a sociedade não tem o direito de legislar sobre um comportamento que só pode causar danos ao próprio individuo. Para eles, essas leis injustas não têm o direito de existir.


Uma definição legalista define que algumas drogas são ilícitas. Por exemplo, no Brasil a Política Nacional sobre Drogas abrange somente as drogas ilícitas, deixando de lado o álcool e o cigarro. Os legalistas aparentemente estão dizendo que o problema das drogas diz respeito à infração legal e não o dano à sociedade. O uso de drogas que são proibidas é um ato de rebelião à autoridade que ameaça à sociedade constituída. Mas, como disse um pesquisador americano Mark Kleiman, “qualquer política de drogas que omita álcool e tabaco, é como uma estratégia naval que omita o Oceano Atlântico e Pacífico” (KLEIMAN, 1992).


A ideologia e o debate das drogas


O debate político partidário não oferece grande guia para entendermos a política de drogas. Posições que são próximas no espectro político podem ter visões completamente diferentes. Alguns políticos, conservadores no geral, têm uma posição contra a legalização de drogas. No entanto os conservadores extremos, como Milton Friedman, defendem a total legalização de todas as drogas. Goode (1997) propõe a seguinte classificação dos políticos em relação à política de drogas:


Conservadores culturais: Acreditam nos valores tradicionais, e que o que está errado na sociedade é que as pessoas se afastaram dos valores tradicionais. Defendem o retorno aos valores religiosos e familiares, com práticas sexuais convencionais, educação básica, laços comunitários, moderação no consumo de álcool e completa abstenção de drogas ilícitas. Esse grupo acredita que todos são responsáveis por suas próprias ações, que são escolhas morais. Traça uma clara distinção entre álcool e drogas ilícitas. O abuso de drogas é imoral e degradam a vida humana.


Libertários do Mercado Livre: Também estão no lado conservador do espectro político, mas discordam completamente em relação à legalização. Diferente dos conservadores culturais, que acreditam que existam diferenças entre as drogas legais e ilegais, esse grupo acha que a distinção entre essas drogas é artificial e deveria ser abandonada. Eles defendem que o governo deveria ficar de fora, e o laissez-faire em política. Ninguém deveria usar drogas e ninguém deveria ser forçado a parar de usar drogas. Somente leis para proteger os menores de idade. Defendem a descriminalização completa. SZASZ (1992) deixa clara a sua defesa da legalização de drogas baseado em considerações político-filosóficas


Construcionistas radicais: Acreditam que a realidade seja socialmente construída, e que não existe um problema de drogas, mas sim que o governo quer deixar parecer que exista para criar um problema mais conveniente e desviar dos problemas mais importantes. O pânico moral dispersa o foco de outros problemas. Acreditam que o problema das drogas é efeito e não causa de problemas sociais. Só resolveremos o problema das drogas com a solução da pobreza e das injustiças sociais.


Legalizadores progressivos: Acreditam que deveríamos acabar com a distinção entre drogas licitas e ilícitas. Que o estado deveria dispensar as drogas para os dependentes e que as leis sobre drogas são problemas que deveriam ser solucionados com o desaparecimento dessas leis. Vêem o debate sobre drogas como um problema de Direitos Humanos. A sociedade deveria parar de demonizar os usuários de drogas, que são cidadãos e seres humanos. Criminalizar a posse e uso das drogas ilícitas é injusto, opressivo e desumano. Representa um tipo de caça às bruxas e penaliza o desafortunado. Defendem a Redução de Danos como uma forma de cuidado com o usuário. A chave do pensamento desse grupo é a crença que o uso de drogas deveria ser regido como qualquer outro comportamento, e que usuários de drogas não são nem mais nem menos racionais nas suas escolhas do que qualquer outra pessoa.


Redução de Danos ou Produção de Danos?


A chamada Redução de Danos representa uma mala eclética cheia de propostas políticas. No nível mais geral, esta proposta defende que, se não podemos eliminar as drogas, pelo menos podemos diminuir os danos. A reforma legal não é a prioridade, mas sim a prática concreta. Defende abertamente tolerância com os usuários de drogas, o que se transforma numa descriminalização de fato do uso de substâncias. Busca-se a aderência ao tratamento com todas as alternativas possíveis.


Existem dilemas teóricos e práticos com essa abordagem. Algumas questões permanecem sem resposta: Como medir a diminuição de um dano em relação a outro? Será que diminuímos o dano de alguns e facilitamos o uso de muitos outros aumentando o numero de usuários? Teremos menos crime e mais usuários? Se quisermos diminuir os danos por que não enfatizar a diminuição das drogas legais que acarretariam maiores benefícios para a sociedade? E se essa política melhorar a vida dos usuários dependentes e piorar a vida de outros, como a família dos próprios usuários?


Ninguém pode ser contra a diminuição de danos geral na sociedade, pois é exatamente isso que as políticas de drogas buscam. Como objetivo geral é indiscutível. No entanto não podemos achar que a eventual diminuição do dano de alguns indivíduos possa produzir uma diminuição global do dano. Ainda que haja uma diminuição de danos de um grande numero de usuários, se isso acarretar um excesso de facilitação ao uso de drogas na população em geral, o número de usuários poderá aumentar, tornando-se um dano maior à sociedade.


O objetivo geral de uma política de redução de danos deveria ser a redução total dos danos das drogas. Devemos fazer a distinção entre micro e macro redução de danos. De uma forma esquemática a equação Dano Total das Drogas = Média de Dano por Usuário x Uso total. Em relação ao uso total temos o numero de usuários e a quantidade que cada um usa. A média de dano por usuário tem dois vetores o dano causado ao próprio usuário e o dano causado a outras pessoas.


Dificuldades na análise dos resultados das políticas de drogas


Anos de debate internacional produziram poucas certezas sobre a eficácia das políticas de drogas. Uma das poucas formas de avaliação mais bem organizada é proposta por MacCoun e Reuter (2001), que sustentam que precisamos olhar as políticas de drogas de uma forma bem mais analítica e levando em consideração a complexidade da situação, com várias áreas que se relacionam de uma forma causal, como a cultura, o governo, as políticas de drogas, o uso de drogas e o impacto no uso de drogas.


Quatro aspectos precisam ser levados em conta quando analisamos a política de drogas de um país:
1 – Vários fatores externos influenciam a política: Tratados internacionais, políticas de saúde e de assistencial social, direitos individuais, autoridade e autonomia dos médicos e aspectos sócio-demográficos.


2 – Os objetivos influenciam diretamente não somente as políticas formais, mas também a implementação. Em alguns países, como a Holanda, a implementação da política de drogas reflete muito mais os objetivos do que a forma escrita dessa política.


3 – As políticas recebem uma influencia simbólica que transcendem a sua implementação. Pessoas influentes fazem declarações que influenciarão a legitimidade e aderência das ações.


4 – As políticas formais e sua implementação recebem influencia direta dos danos sociais percebidos socialmente pelo uso de drogas que podem ser independentes do nível de uso de drogas.


Avaliar a extensão do problema das drogas vai alem de saber o numero de usuários de determinadas drogas. As drogas diferem em termos de danos ao individuo e a sociedade. Também é necessário saber como a droga é usada, pois muitas vezes o mudo de usar produz dano maior. A cocaína cheirada produz um dano diferente do que a fumada na forma de crack.


As escolhas também são influenciadas pelos valores políticos e definições do que constitui o problema das drogas. Nos Estados Unidos, por exemplo, existem duas visões claras, uma relacionada à saúde publica e outra relacionada à justiça criminal. Devido à grande violência relacionada ao trafico de drogas esse pais escolheu o lado da justiça criminal para lidar com o problema das drogas, com toda série de implicações conhecidas. A Europa, por outro lado escolheu o lado da saúde publica, muito embora existam grande complexidades nesses países. Temos o exemplo da Suíça, que convive com experimentos sociais alternativos para usuários de heroína e tem uma das maiores taxas de encarceramento da Europa. A Suécia tem uma clara retórica antidroga e leis consideradas duras, mas tem um investimento muito maior do que qualquer outro país, inclusive a Holanda, na área de prevenção e tratamento. Vários autores já mencionaram que a melhor forma que os suecos mostram a sua visão liberal em relação às drogas é pelo investimento e pela real preocupação em ajudar os usuários a se livrarem das drogas.


Os países também diferem em relação à autonomia que os médicos têm. Alguns países permitem que os médicos prescrevam heroína. No Brasil uma grande parte da prescrição de benzodiazepínicos e anfetaminas é feita de uma forma indevida e que contribui para o problema das drogas.


A figura abaixo organiza a forma como uma política de drogas deveria ser entendida na sua complexidade, para que no futuro tenhamos formas de avaliar a sua eficácia longe de discursos retóricos que não auxiliam na objetividade

Figura: Política de Drogas e Avaliação Analítica
Suécia – restrição às drogas como cuidado social

O sistema de controle de drogas de um país é uma construção complexa e na maioria das vezes controvertida. Desenvolve-se na própria cultura, em dado momento histórico, e influenciado por outras preocupações, políticas sociais e sistema legais. O sistema de controle de drogas é somente em parte sobre leis, é mais relacionado à aplicação das leis. Além disso, a política de saúde, segurança social, formas de manejo com o desvio social e o sistema judicial são todos intimamente conectados ao sistema de controles.

O sistema de controle de drogas sueco tem sido um dos mais debatidos nos anos recentes por que difere em muito do que ocorre na Europa. Ele é muito mais restritivo, o uso de drogas não é tolerado. Na realidade, em 1977 foi declarado que um dos objetivos do sistema era criar uma sociedade livre das drogas. Para a implementação desse objetivo, quantidade substancial de dinheiro tem sido alocado para prevenção e informação, política de controle e tratamento, que são os três pilares do sistema sueco. Os indicadores disponíveis mostram que o número de dependentes químicos nesse país é relativamente baixo quando comparados com a Europa.

Até um século atrás a Suécia era um país pobre e rural. Somente no século XX houve uma mudança radical em termos de crescimento econômico, tornando o país moderno e ao mesmo tempo tradicional nos seus valores.

Fundamentos científicos e ideológicos do Modelo Restritivo

Para se entender o modelo sueco restritivo de política de drogas é essencial discutir suas bases ideológicas e científicas. Um autor influente foi Nils Bejerot, que fez uma distinção entre vários tipos de dependência, em especial o conceito de “dependência epidêmica”. Nesse conceito ressaltava que pessoas psicológica e socialmente instáveis, após receberem a influência direta de alguém dependente de drogas, começam a usar drogas que não são aceitas socialmente para obter euforia. Um ponto importante nesse conceito é o significado de epidêmico que mostra o caráter de doença com uma incomum alta incidência definida no tempo, lugar e pessoas, comparada com experiência prévia. Além disso, Berejot menciona o caráter de contagio, ou seja, um usuário influenciando o outro. Ele considera que a epidemia do uso de substâncias tem um alto grau de contágio psicossocial, onde a disponibilidade da substância é o fator mais importante no desenvolvimento dessa forma de abuso. Uma vez formado um grupo de usuários isso cria uma sub-cultura da droga que contamina a sociedade. Isso explica o termo contágio psicossocial ou pressão grupal. Esse contágio pode mesmo ser colocado numa fórmula C = S x E, onde o contágio é função da susceptibilidade individual e da exposição.
Para Bejerot, a susceptibilidade individual é difícil de influenciar, mas a exposição pode ser influenciada pela política das drogas. A consequência é que a sociedade deve restringir o acesso às drogas pois isto teria efeito no número de pessoas usando essas substâncias. A política, portanto, deveria olhar para o usuário que é a parte central da “corrente das drogas”, pela sua influência direta em outros usuários. Os traficantes sempre serão trocados por novos traficantes dispostos a correr o risco de dinheiro fácil. Os usuários por outro lado não deveriam ser repostos e devem ser considerados como o motor do sistema. Para modificar o sistema temos que ajudar os usuários: “Nós temos que aceitar o fato doloroso que nós não faremos avanços decisivos a menos que o abuso de substâncias, o usuário e a posse pessoal de drogas sejam colocadas no centro da nossa estratégia”. Bejerot posiciona-se contra a repressão do sistema legal, mas acredita que os usuários deveriam ter responsabilidades por seu comportamento.

Outro aspecto conceitual importante é o da hipótese de “porta de entrada”, que significa que a maconha levaria para a experimentação com outras drogas mais perigosas. Embora esse conceito seja objeto de grande debate científico, o fato é que o uso da maconha possa ser considerado no mínimo como um fator de risco para a experimentação. Na realidade um grande foco na política sueca é em relação a maconha e como desestimular o seu consumo.
Outro fator que influencia esta política de drogas foi o desenvolvimento por mais de um século da política sueca do álcool. Desde o século XIX a Suécia adotou uma política do álcool repressiva e que teve como base a limitação da disponibilidade das bebidas alcoólicas. Esse é um modelo de sucesso e fez com que os suecos sejam os que menos consomem álcool na Europa. Esse modelo baseia-se no fato que o consumo total do álcool influencia o total de dano social causado pela substância. Esse modelo sugere que quanto mais indivíduos beberem numa sociedade, a mesma contará mais bebedores pesados. Portanto do ponto de vista da saúde pública a melhor opção é manter o número de bebedores o menor possível.

Esse modelo, que recebe evidências para o álcool, é usado para outras drogas. Quanto mais pessoas experimentarem drogas, maiores as chances de termos usuários pesados e disfuncionais. Quanto mais usuários de maconha, maio o número de usuários de outras drogas mais pesadas.

Como resultado a política de drogas deveria focar em limitar o consumo total de drogas, começando com qualquer forma de experimentação, o que na prática significa experimentação com maconha. Portanto, uma grande parte da prevenção nesse país baseia-se em prevenir a experimentação com a maconha. Um grande debate nacional criou uma percepção de risco bastante alto da população em relação à maconha, tendo como conseqüência baixo uso quando comparado com os países europeus.

A política sueca de drogas na prática

Embora o uso de drogas seja considerado socialmente inaceitável, o objetivo da política não é punir os indivíduos. Ao oferecer cuidado e tratamento se busca que o usuário se torne livre das drogas e ficque reabilitado e reintegrado à sociedade. Se um indivíduo usar drogas em público, ele será encaminhado por uma assistente social para tratamento, se necessário para tratamento compulsório. Por essa razão investe-se uma grande quantidade de dinheiro no setor de tratamento.

Nos anos 80 houve uma mudança conceitual importante do sistema que passou a buscar reduzir a demanda de drogas. O objetivo não era mais o traficante, mas o usuário, que foi considerado a engrenagem do tráfico. O uso de drogas tornou-se criminalizado. Essa abordagem potencialmente permitiu identificar novos usuários e oferecer tratamento. Esse tipo de modelo acaba usando muito o sistema policial. A Suécia mantém uma boa relação do número de policiais em relação à população geral, e cerca de 12% do tempo da polícia é gasto com o uso de substâncias. A força policial está no centro do objetivo de ter uma sociedade sem drogas.

Em 1988, o uso de drogas tornou-se crime nesse país, mas a penalidade para o uso não é a prisão, mas sim uma multa. Mais recentemente a pena aumentou para prisão de até seis meses, e a polícia tem vários meios a seu dispor para detectar o uso de drogas, mesmo que o individuo não tenha cometido nenhum delito. O uso de exames de urina para detecção do usuário é muito comum e não parece ter grande resistência quer seja dos policiais ou da população em aceitar essa prática. Um grande número de usuários, especialmente adolescentes, acaba indo para o sistema de tratamento dessa forma. Além de mandar o usuário para tratamento ele também recebe uma multa.

O sistema legal sueco tem três categorias de infração em relação às drogas: menor, normal e maior. Depende da droga e da quantidade apreendida. Quando alguém é identificado pelo teste de urina, recebe uma multa. Quando além do teste a pessoa tiver em sua posse pequenas quantidades, a prisão até seis meses é uma opção, mas isso raramente ocorre, multa ainda é o mais comum. Muito embora isso só ocorra na primeira ou segunda vez que a pessoa é pega. Por exemplo, um usuário que é pego várias vezes é bem provável que seja condenado a um mês de prisão. Quando alguém é pego vendendo, será preso em todos os casos. Embora a lei não faça grande distinção entre usuários e traficantes, na prática a diferença existe. As infrações consideradas maiores recebem pelo menos dois anos de reclusão. A sentença máxima é de 10 anos quando tem em sua posse, mais de um quilo de heroína, ou dois quilos de cocaína. A quantidade de drogas apreendidas devido ao tráfico é relativamente baixa. A geografia do país dificulta o acesso, mas com certeza a fiscalização também é outro fator.

Vale à pena salientar que existe uma grande pressão por parte da opinião publica em reivindicar maiores controles sociais e legais em relação às drogas.

O sistema de tratamento

Como salientado anteriormente o objetivo da política sueca não é punir os usuários, mas oferecer reabilitação. O tratamento é um dos três pilares do sistema. Um conceito importante é o de “corrente de cuidado” que significa que elementos diferentes no sistema de tratamento, como: atividades de “outreach” (busca ativa de usuários), desintoxicação, cuidados ambulatoriais e internação. Os assistentes sociais são muito importantes nesse sistema, são eles que, na busca ativa dos usuários, determinam quem deve ir e/ou permanecer em tratamento. Dois tipos de tratamentos são disponibilizados: voluntário e involuntário, com uma grande diversidade de técnicas a serem usadas nesses sistemas. O sistema de Comunidade Terapêutica domina, e não é incomum um usuário ficar dois anos internado. No sistema compulsório, que é raramente utilizado, pode-se ficar até seis meses, e o principal objetivo é motivar o usuário a se tornar voluntário no seu tratamento. A maioria do tratamento involuntário é para adolescentes recalcitrantes ao tratamento voluntário.

Uma grande mudança ocorreu no sistema de tratamento nos anos 80, com o advento da AIDS. Diferente dos demais países europeus a Suécia não adotou a política de redução de danos. O governo decidiu que, com o risco da AIDS, o melhor seria identificar rapidamente os usuários e oferecer desintoxicação e tratamento imediato. Houve uma grande expansão do setor de tratamento. A temida epidemia de AIDS na população de usuários de drogas não ocorreu nesse país."

(* Médico psiquiatra, PHD em Psiquiatria pela Universidade de Londres (1994), Professor Titular do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo, Coordenador da UNIAD (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas) da UNIFESP, Investigador Principal do Instituto Nacional de Políticas do Álcool e Drogas.)

Referências bibliográficas:
BABOR, T.; CAETANO, R.; CASSWELL, S.; EDWARDS, G.; et alii. Alcohol no ordinary commodity - Research and public policy. Oxford University Press, 2003.
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MACCOUN, R. J. Drugs and the law: A psychological analysis of drug prohibition. Psychological Bulletin, 1993, 113, 497-512.
MACCOUN, R.; REUTER, P. Drug war heresies: Learning from other vices, times, and places. Cambridge University Press, 2001.
SZASZ, T. Our Right to Drugs. The Case for a Free Market. Praeger Publishers, New York, 1992.

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